O vírus contra o futebol

A pandemia do novo Coronavírus paralisou os campeonatos de futebol em praticamente todas as partes do mundo. A UEFA e a Concacaf, por exemplo, adiaram a Eurocopa e a Copa América para 2021. Seria a primeira vez que essas interrupções ocorrem por questões de saúde? “Estamos vivendo um fato inédito do ponto de vista mundial”, diz o jornalista Celso Unzelte, pesquisador, professor, comentarista da ESPN-Brasil e autor da Panda Books. “Mesmo na época da Segunda Guerra, como a América do Sul não era o campo de batalha, a vida continuava normalmente por aqui. As Copas de 1942 e 1946 foram canceladas, mas tivemos os campeonatos sul-americanos.” Celso deu a seguinte entrevista ao Panda News:

Panda News – É a primeira vez que o futebol para por causa de uma pandemia?

CELSO UNZELTE – Em 1918, o problema era a chamada Gripe Espanhola, mas, nesse caso, o futebol europeu já estava parado. A epidemia veio logo depois da Primeira Guerra, que só acabou em 11 de novembro daquele ano. Tinha futebol no Brasil, e aqui o primeiro caso do surto foi diagnosticado no dia 15 de outubro, em São Paulo. Cinco dias depois, as partidas de futebol foram suspensas de um modo bem abrupto: os torcedores estavam nos estádios quando os agentes de segurança chegaram para dizer que não haveria jogo. O público não quis ir embora, e alguns times resolveram atuar amistosamente — veja como a sociedade não estava preparada para a situação. Naquele dia, três partidas estavam marcadas na capital paulista: no Jardim América, onde até hoje está a sede do Paulistano, Paulistano x Internacional; na Floresta, atual local da Ponte das Bandeiras, São Bento x Minas Gerais; na Avenida Água Branca, aconteceria a inauguração do campo do Ypiranga, com um jogo contra o Mackenzie, que não ocorreu. O campeonato só foi reiniciado em 15 de dezembro e acabou em 19 de janeiro do ano seguinte.

Foi então uma paralisação rápida?

Sim, relativamente rápida. Não havia a quantidade de jogos que há hoje. Na época, eles decidiram que só seriam realizadas as partidas que envolvessem a decisão do título. Por isso, o Paulistano terminou campeão disputando 15 jogos; o Corinthians foi vice com 17; o Santos ficou em quarto com 13, e o Mackenzie, oitavo, com 11. Isso não aconteceu apenas em São Paulo. No Rio de Janeiro, o campeonato também ficou parado por 56 dias — entre outubro e dezembro, com a final em janeiro de 1919. Um jogador do Fluminense, Archibald French, morreu por causa da Gripe Espanhola. Aliás, o presidente eleito do país, Rodrigues Alves, morreu no Rio antes de tomar posse. No Rio Grande do Sul, os jogos também foram cancelados. O primeiro campeonato gaúcho ocorreria em 1918, ano em que a Federação foi criada. Seria um triangular entre Cruzeiro (campeão da região de Porto Alegre), Brasil de Pelotas e o 14 de julho (de Santana de Livramento, na região da fronteira com o Uruguai). O campeonato só aconteceu no ano seguinte, mas com a participação de outros clubes e o Brasil de Pelotas foi campeão. Cem anos depois, os times de 1918 tentaram fazer com que a federação reconhecesse todos eles como vencedores do campeonato que não teve, mas a entidade discordou.

 

Celso Unzelte é autor de livros como “Corinthians: uma caixinha de surpresas”.

Hoje, alguns clubes profissionais estão oferecendo suas instalações para atender gente doente. Na época da Gripe Espanhola, os clubes de futebol fizeram o mesmo?

Sim, principalmente o Paulistano e o Palmeiras, que ainda se chamava Palestra Itália. Na sede social do Palestra, localizada no centro da cidade, havia uma enfermaria com 31 leitos. O time também doou 500 mil réis mensais para os órgãos de saúde. Houve um engajamento muito grande da sociedade contra a Gripe Espanhola, e pessoas ligadas ao Palestra Itália criaram um grupo de apoio às famílias dos enfermos. Graças aos clubes, empresários doaram cestas de alimentos. Conseguiram até ambulâncias para o tratamento de doentes. O Paulistano também cedeu espaço em sua sede, no Jardim América. O futebol se mobilizou naquela época, como agora também.

Houve algum time rebaixado nessas competições?

Não. Nessa época, felizmente para a ordem dos campeonatos, não havia o rebaixamento, que é um outro grande problema dos dias de hoje. Os clubes podem até resolver, por consenso, qual será o campeão. Mas a questão dos rebaixados é complicada, pois envolve os times que têm direito a subir de outra divisão.

Mais recentemente, nos anos 1970, nós tivemos o surto da meningite em São Paulo. Em algum momento se falou em paralisar o futebol por aqui?

Futebol, especificamente, não. Mas os Jogos Pan-americanos de 1975, sim. Eles estavam marcados, inicialmente, para Santiago do Chile, mas houve o golpe militar de Pinochet em 1973. Logo depois de tomar o poder, a junta militar abriu mão do Pan. Então, São Paulo assumiu a empreitada, e as competições deveriam ter ocorrido aqui. Em outubro de 1974, porém, a cidade abdicou da competição, alegando oficialmente riscos à saúde dos participantes por causa da epidemia de meningite. Essa é uma das versões, a oficial, do então presidente do COB [Comitê Olímpico Brasileiro], major Sylvio de Magalhães Padilha. Uma outra versão dá conta de que não havia verbas. O advogado Alberto Murray Neto, neto do major Padilha, confirma ter ouvido do avô que o então ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, afirmara não haver dinheiro, mas a justificativa do governo seria o surto de meningite. Existia censura da imprensa vigente, não era interessante que se divulgasse os números daquele surto, que foi bem grande no Brasil.

Por que o surto do vírus ebola não cancelou a Copa da África de 2014?

Ela deveria ter acontecido no Marrocos, mas o país pediu para adiar por causa do avanço ebola. A federação africana não concordou e mudou a sede do torneio para a África do Sul. O campeonato ocorreu em pleno surto da doença, que se espalhava desde o final de 2013. Quando a epidemia acabou, cerca de 11 mil pessoas tinham morrido.

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