Em “Moleque”, Carmen Lúcia Campos une a paixão pela origem das palavras com a preocupação em ressaltar a cultura e o legado da África no Brasil
O fascínio pela Língua Portuguesa define toda uma vida e pode ser resumida em uma frase reveladora: “Quando eu era criança, meu sonho era ter um dicionário”. Entre o encantamento inicial com os livros e a carreira de sucesso como editora e escritora, Carmen Lúcia Campos teve que driblar as dificuldades impostas às classes mais pobres quando o assunto é o acesso à cultura no Brasil: “Minha família era humilde: não se pensava em comprar livro”, lembra ela, que vê ainda uma dose de sorte nos seus primeiros contatos com a leitura: “Uma vizinha colecionava grandes clássicos e, quando se mudou, quis se desfazer da coleção e nos doou. Eu não entendia muita coisa, mas já tinha essa curiosidade de sublinhar a palavra e procurar na biblioteca no dia seguinte”.
Os clássicos, em sintonia com a força da oralidade nas histórias contadas pela avó, encantaram Carmen. Foram incontáveis os dias na biblioteca do bairro do Jardim da Saúde, zona sul de São Paulo, lendo e construindo na própria cabeça possíveis sequências para as histórias que acompanhava. À medida que avançava na adolescência, trocou as tramas sobre castelos de terras longínquas por obras que lhe tocavam de maneira muito mais particular, como “O mulato”, de Aluísio Azevedo, e “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto. Textos que tratam da desigualdade racial, social e de gênero no Brasil e que, mais tarde, moldariam o perfil da escritora Carmen Lúcia Campos. Antes disso, outra Carmen, a professora Carmen, de Língua Portuguesa, reconheceu talento na aluna de mesmo nome e estimulou ainda mais o gosto já tão latente pela Literatura. Com notas altas em todas as matérias em todos os colégios estaduais que frequentou – o Alberto Levy, o Júlio Ribeiro e o Charles de Gaulle –, flertou também com as Ciências Exatas, mas acabou ingressando na faculdade de Letras na Universidade de São Paulo. A aptidão para a escrita era gritante nas aulas de redação: “Fiz um texto que contava a história de uma menina que vivia em um orfanato”, conta. “As pessoas ficaram emocionadas e diziam que não sabiam que eu tinha vivido em um orfanato. Eu nunca vivi em um orfanato! Era tudo ficção. Ali eu percebi que eu era convincente”.
Formada em Letras, entrou na Editora Ática como estagiária e decolou. Foram mais de duas décadas como editora, especialmente de livros infanto-juvenis. Trabalhou, por exemplo, com a consagrada Coleção Vaga-lume e conviveu diretamente com autores do gabarito de Marcos Rey, Ana Maria Machado e Fernando Sabino: “Aprendi muito a ouvir o leitor. Não adianta você escrever um texto, achar maravilhoso e ele não chegar à outra ponta. O texto só faz sentido se tocar a alma e o coração do leitor. Devemos ter a humildade de fazer e refazer”, acredita. Hoje, já são 20 os títulos publicados por ela como autora. “Moleque”, o mais recente, é aquele que mais contempla a trajetória de vida da menina fascinada
pela origem e o significado das palavras. É que, além de trabalhar diretamente com a Literatura, ela também se dedica, há 15 anos, a contar histórias e dar aulas no Centro de Crianças e Adolescentes Gaetano e Carmela, na Vila da Saúde: “Queria levar para eles algo que remetesse ao Dia da Consciência Negra, mas não encontrei nada que despertasse o interesse deles para as
palavras”, lamenta. Se não havia nada pronto, Carmen tratou de construir ela própria uma história que mostrasse aos jovens o quanto de África existe na Língua Portuguesa.
Construída a ideia, começaram as pesquisas para encontrar expressões absolutamente comuns no nosso dia a dia, que saíram primeiro das bocas de iorubas, jejes, bantos e vários outros povos vindos do continente africano. Com a lista em mãos, ela precisou fazer uma seleção e uma amarração simples para criar uma história com começo, meio e fim. Uma história normal, sobre o
dia comum de uma criança, que conscientemente não pretende roubar a cena do que é mais importante no livro: realçar a pluralidade na construção do nosso idioma. “Antes que você comece a leitura, eu quero lhe fazer uma pergunta: Você fala alguma língua africana? Não? E agora? A história desse livro tem MUUUITAS palavras que vieram da África. Elas aparecem destacadas no
texto: Moleque é sapeca e adora uma bagunça. Já escapou de levar um pito só porque é o xodó da vovó”, diz um trecho do livro.
Ao longo de 25 páginas, o leitor passa ainda por cafuné, cafundó, miçanga, tagarela, cangote, caramba, perrengue, zoeira, chilique, trambique, lengalenga, muvuca. Além do valor cultural em si, o livro procura ocupar um espaço que durante muitas décadas esteve vago na produção literária do Brasil, que fala bem menos do que deveria sobre a herança cultural africana e dá menos espaço do que deveria para narrativas construídas a partir do olhar e dos lugares de fala afro-brasileiros: “Existe um campo enorme a ser explorado na Literatura brasileira. Mais recentemente temos autores e autoras com essa preocupação. Minha literatura é preocupada em dar voz”, resume.
Essa empreitada se reflete em outros títulos, como “Meu Avô Africano”, também lançado pela Panda Books, que nasceu quando Carmen percebeu que não era possível deixar a África de fora da série que rememora os costumes e as histórias das primeiras gerações de imigrantes de diversos países no Brasil. Trata-se não apenas de uma questão de justiça, mas também de ajudar a formar novos leitores. Afinal de contas, a leitura tende a ser mais prazerosa quando retrata aquilo que se vê e da forma como se enxerga o mundo. “Certa vez, no Maranhão, conheci uma menina que era tida como muito inteligente, mas que supostamente não gostava de ler. Tomei aquilo como uma missão e ofereci a ela ‘Meu Avô Africano’. Depois, ela me disse que leu duas vezes e que queria mostrar a um dos primos. Na infância, ela não conhecia nenhum livro com personagens negras e eu não gostava de ler porque as histórias não tinham nada a ver comigo”. É um exemplo de como histórias plurais podem e devem transformar o mercado editorial.