Sucesso com livros infantis, Olívio Jekupé segue fazendo da escrita instrumento de crítica e denúncia sobre os direitos que os povos nativos devem conquistar e preservar
Olívio Jekupé adentrava a adolescência quando alimentou o fascínio pela leitura a partir de uma coincidência geográfica: gostava tanto de jogar futebol que chegava ao local da partida horas antes do apito inicial. Até que, nas redondezas, achou uma biblioteca onde se encantou com as obras do baiano Jorge Amado, do filósofo argentino Henrique Dussel e do teólogo Leonardo Boff: “Lia algumas páginas todos os dias antes dos jogos”, recorda, apontando “Capitães de Areia” e seu impressionante registro da vida dos meninos de rua da Bahia como uma referência especialmente marcante para despertar a indignação e a necessidade de refletir sobre as questões brasileiras.
Como talvez fosse fácil de imaginar, Olívio tornou-se escritor com 21 títulos já publicados, a maior parte deles no concorrido mercado editorial da cidade de São Paulo. Hoje, o paranaense de 56 anos é reconhecido pelos livros infantis que colocam no papel as histórias que os povos indígenas, até agora, só registravam de maneira oral, de geração para geração.
Algumas das histórias orais que viraram livros têm larga semelhança com relatos que todo mundo já ouviu pelo menos uma vez na vida: o Saci Pererê, por exemplo, foi fruto de uma transformação que diz muito sobre a história do Brasil. Ele é, para os guaranis, Jaxy Jaterê, o protetor da natureza. Os negros africanos trazidos para o continente sul-americano como escravos fizeram o Saci Pererê, que ganharia os seus contornos mais conhecidos a partir da obra de Monteiro Lobato, o escritor branco de “O Sítio do Picapau Amarelo”. O espanto de Jekupé com o resultado dessa miscigenação se tornou a base do livro “O Saci Verdadeiro”, lançado pela Panda Books. O protagonista, Karaí, percorreu exatamente o mesmo caminho do autor: saiu da aldeia, foi estudar na cidade e lá descobriu o Saci-Pererê. “Pererê” significa algo pouco educado em tradução literal para o idioma guarani. Pela Panda Books, Olívio também lançou “O presente de Jaxy Jaterê” e “A mulher que virou urutau”.
Na época das partidas de futebol, Olívio tinha uma trajetória comum a qualquer outro garoto que crescia em Cornélio Procópio, no extremo norte do Paraná, a praticamente 400 quilômetros de Curitiba. Diferentes mesmo, só o sobrenome e os passeios para a aldeia onde vivia a família materna. A aldeia não existe mais e até mesmo o nome dela já se perdeu nas memórias com o passar do tempo. Durante algumas décadas, essa seria a única relação direta de Olívio – nascido em 1965, numa fazenda em Novo Itacolomi, um distrito que ainda demoraria 28 anos para se tornar município – com a vida em uma aldeia guarani, uma das mais representativas etnias indígenas do continente sul-americano, que chegou a espalhar cerca de 2 milhões de pessoas pelo continente antes das invasões europeias.
Em 2000, ao se tornar mais um dos membros da aldeia Krukutu, às margens da represa Billings, no extremo da zona sul da capital paulista, Olívio encontrou a primeira oportunidade de alcançar grande projeção com o trabalho de escritor: “Nós éramos visitados por muitos turistas e ali eu comecei a vender alguns dos meus livros. Fui ficando conhecido”, diz, com orgulho.
A trajetória até lá foi cheia de percalços: em 1988, Olívio mudou-se para Curitiba e ingressou no curso de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná: “A filosofia me despertou a escrever sobre a causa indígena. A gente estuda e fica cheio de ideias na cabeça e eu queria fazer alguma coisa. Eu dizia que um dia queria escrever um livro meu”. Veio para a capital paulista, recomeçou o curso praticamente do zero na Universidade de São Paulo e, depois de passar por muitas dificuldades, voltou para o Paraná em 1998 para viver pela primeira vez de fato dentro de uma comunidade nativa. Na aldeia Laranjinha, já havia realizado o sonho de publicar dois livros – sempre com textos altamente críticos –, mas os projetos, independentes, naufragavam diante da falta de leitores. “Era uma região onde viviam apenas fazendeiros e os chamados boias frias que trabalhavam para eles. Os boias frias ganhavam 7 reais por dia e não tinham dinheiro para comprar. Os fazendeiros eram muito ricos e não tinham interesse em saber sobre a causa indígena”, resume.
Na volta à São Paulo, na aldeia krukutu, o sucesso com os turistas logo se refletiu em um maior interesse das editoras. Era o início do século XXI, época de festejos pelos 500 anos do Brasil e a efeméride foi propícia para que o mercado editorial se tornasse um terreno mais amigável. Daí para que os textos críticos e reflexivos a respeito da realidade dos povos indígenas dessem lugar à literatura infantil foi um pulo. A capacidade de escrita chamou atenção até da prefeitura de São Paulo, que viu no texto de Olívio potencial para atrair a atenção e ensinar estudantes paulistanos sobre as tradições e a cultura do índio brasileiro.
Ao ser convocado para escrever para crianças, Olívio tinha frescas na memória as histórias que escutava de tia Erundina. Foi ela a responsável por inserir o então garoto no fascinante mundo das histórias transmitidas de maneira oral – sobretudo aquelas contadas no opy, a casa de reza dos povos guarani. Um costume que, mesmo morando na cidade, ele cultivava contando essas mesmas histórias todas as noites para os seus filhos: “A coisa mais forte do mundo é a oralidade. Eu gosto mais de textos críticos, mas eu vejo a publicação dessas histórias como algo legal porque é um registro importante. Muitas histórias se perderam”. A resposta ajuda a entender como o próprio escritor enxerga a sua obra: a literatura infantil foi uma inesperada – e agradável – surpresa para um autor que segue orgulhoso do ativismo que marca os seus textos.
Não é difícil entender por que, apesar do sucesso na literatura infantil, o autor tem tanto orgulho da sua veia contestadora. Na infância, entre a cidade e a aldeia, Olívio folheou tantos livros que começou a escrever: “Eu achava que já era escritor. Escrevia poesias e romances. Nunca publiquei um romance, mas até hoje tenho esses textos guardados”, conta. Era 1984. Quatro anos antes, o líder indígena Ângelo Kretã havia morrido em um acidente automobilístico de circunstâncias controversas. O ativista ambiental batalhou pela preservação e recuperação de terras conhecidas pelas vastas plantações de araucárias, as árvores típicas do Paraná. A postura combativa e bem-sucedida despertou o indesejado interesse de latifundiários e madeireiros, a quem Olívio credita a suposta emboscada que vitimou Kretã. A luta do cacique chegou ao fim, mas a do futuro escritor estava começando: “Fiquei preocupado e pensei que tínhamos que escrever sobre coisas assim”.
Hoje, Olívio divide a sua produção entre os livros infantis e a literatura crítica. Depois de anos de avanços, ele observa, preocupado, o retrocesso na relação entre o Brasil e os povos nativos nos últimos anos, sobretudo a partir da eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018: “O atual presidente se elegeu em cima dos povos indígenas. Ele joga o povo contra o povo e jogou toda a sociedade contra a gente. Ele disse que não ia dar um centímetro de terra para os índios brasileiros. Nós somos 1 milhão num país de 200 milhões, então a gente precisa batalhar muito. Não somos vagabundos. Sempre digo que, mesmo que um de nós não faça nada, ainda está fazendo mais do que o resto porque nós preservamos e vocês destroem”, desabafa ele, que atualmente vive na aldeia Kakané Porã, em Curitiba.
Em 2014, a Fifa, que se preparava para organizar a Copa do Mundo no Brasil, foi à aldeia krukutu para encontrar um jovem que pudesse entrar em campo junto com os jogadores do Brasil e da Croácia na partida de abertura, em Itaquera, na zona leste de São Paulo. O escolhido foi Jeguaká, um dos cinco filhos de Olívio – os demais são a professora Kerexu, 24 anos, a artesã Gisele, 20, e os também escritores Tupã, 22, e Jekupé Mirim, 18. Depois de cumprir todo o protocolo, Jeguaká sacou do calção uma faixa que dizia “Demarcação já”, em letras grandes e para o mundo todo ler. O pedido pela demarcação das terras indígenas era tudo o que os dirigentes mais importantes do futebol mundial menos queriam ver, mas correu o mundo.
Hoje, aos 20 anos, Werá Jeguaká Mirim virou o rapper Owerá Kunumi MC, que já foi tema de documentário, gravou com Criolo e lançará em breve uma canção com o DJ Alok. Jeguaká lançou pela Panda Books o livro “Kunumi Guarani”. O pai fala com orgulho das letras e melodias que levam o legado da família adiante: “As pessoas acham bonito e ficam emocionados, mas não sabem do que estamos falando. Se traduzirem a letra, vão ver que também é só porrada. Estamos dizendo: devolvam as terras que vocês nos roubaram”.