“As crianças gostam de boas histórias. Simples assim!”

Autor de “Pra que essa boca tão grande?”, Tino Freitas explica por que os contos de fadas continuam conquistando crianças há tantas gerações

 

“Vovó, qual é a senha do wi-fi?”, pergunta Chapeuzinho Vermelho em “Pra que essa boca tão grande?”, lançamento infantojuvenil da Panda Books. A brincadeira é uma das marcas do trabalho de Tino Freitas, autor cearense que, em menos de 15 anos de carreira como escritor, já publicou trinta livros – e faturou prêmios como o aclamado Jabuti e o Selo Altamente Recomendável da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).

Na Panda Books, Tino estreou com “Um abraço passo a passo”, que ganhou também a versão em inglês “Little steps to a big hug”. Agora, chegou a vez dessa releitura da clássica história da Chapeuzinho Vermelho. Embora a versão mais famosa seja a dos irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm, Tino embasou a sua versão naquela que é a mais antiga história de Chapeuzinho Vermelho já registrada – a do francês Charles Perrault, escrita no final do século XVII.

Ele aposta num texto leve, bem-humorado e criativo, todo ilustrado por Raquel Matsushita, para preservar a força de uma das histórias mais conhecidas do mundo também para as crianças de hoje. Por falar nas ilustrações, cada página é uma espécie de moldura de página. É um livro dentro de um livro para o leitor olhar em perspectiva o olho do narrador sobre o livro que ele está folheando.

Tecnicamente, contos de fadas são histórias irreais, em geral com finais felizes, e marcadas também por grandes ensinamentos. Por causa disso, é difícil definir com precisão desde quando eles são publicados – há quem encontre histórias com essa estrutura datadas de mais de 6 mil anos.

A exemplo da Chapeuzinho Vermelho do livro, nós também somos muito perguntadores. Tem um monte de coisas que queremos saber do Tino:

 

Por que os contos de fadas ainda são fonte de inspiração para autores contemporâneos como você?

Os contos de fadas refletiam o cotidiano dos aldeões da Europa nos séculos XVII e XVIII. Falavam sobre o que nos torna humanos: o medo, a raiva, o desejo, o amor, a fome, a inveja. Os anos passam, mas seguimos humanos com as mesmas qualidades e os mesmos defeitos. Aquelas histórias curtas, em que o maravilhoso e o fantástico podem trazer a sorte ou o azar, delimitando o destino de personagens tão humanos quanto a gente, seguem emocionando leitores de todas as idades. São um espelho da humanidade e mantêm nosso sonho vivo. O sonho de encontrar a felicidade – seja lá o que seja isso. É inspiração para qualquer um que deseje contar boas histórias para crianças.

 

 

Depois de tanto tempo e de tantas mudanças geracionais, as “morais das histórias” continuam funcionando?

Muitos dos contos de fadas não tinham essa preocupação moral. Alguns dos contos franceses publicados no final do século XVII, por exemplo, falavam mais sobre esperteza do que sobre virtude. Prefiro essas histórias. Em “Contos de Outrora”, Charles Perrault inseriu essas morais ao final de cada um dos contos populares – o que não aparece de forma explícita nos contos que os Irmãos Grimm publicariam 115 anos depois. Entendo que haja a necessidade de ensinar por meio de histórias. E que, principalmente, a escola busca alguma didatização a partir delas. Mas acho que a gente aprende mais quando esses “sentidos” estão ocultos, inseridos no conto de uma forma em que o leitor construa a sua verdade e a sua moral.

 

Como é o seu processo de criação em cima de uma história clássica?

Estudei bastante a versão do Charles Perrault para escrever “Pra que essa boca tão grande?”. Foi a primeira vez em que Chapeuzinho Vermelho apareceu num livro. Ela serviu de base para escrever essa nova história e eu fui pensando em algum “espaço” que eu pudesse preencher com alguma originalidade. As perguntas que o Perrault faz são distintas das que os Irmãos Grimm pontuaram com mais ênfase nos sentidos. Então, lembrei que há uma fase nas crianças, ali entre os 5 e os 7 anos, em que se pergunta tudo. Pensei que esse seria o espaço para contar uma “nova” história e fui me colocando no lugar dessa criança de hoje. O wi-fi é o “cafezinho” de antigamente. A pessoa chega na casa da gente e já quer a senha, né? É uma forma de dizer “sinto-me em casa”. Assim eu fui escolhendo as novas perguntas.

 

Como foi o trabalho com a ilustradora Raquel Matsushita?

Trabalhar com a Raquel foi maravilhoso. Numa conversa prévia, apresentei a ela o universo dos contos de fadas, que estudo há anos na perspectiva dos livros publicados até o início do século XX. Começamos pelo manuscrito do livro do Perrault, que é uma joia escondida na internet. Ela “pescou” o manuscrito e veio com esse conceito de um livro dentro do outro – e usou as páginas do manuscrito, editadas, para contar a nossa história. Há outros “segredos”: o número da casa, que é o ano da publicação do livro original, as ilustrações nos quadros da casa da vovó [que são inspiradas ou reproduzem desenhos de algumas das mais famosas versões do conto]. Esses “paratextos”, que muitos não captam de imediato, são como camadas de leitura que oferecemos ao leitor. Um carinho a mais àqueles que desejarem retomar mais e mais vezes a história.

 

As crianças gostam de ver elementos modernos em histórias que elas conhecem de outro modo?

Se compararmos a leitura de uma história com um passeio na montanha-russa, podemos “ler” de duas formas. O primeiro passeio é surpreendente. Depois, seguimos dando voltas e mais voltas na pista, já sabendo que depois daquela curva virá uma pirueta que vai deixar todo mundo de cabelo em pé e com frio na barriga. A segunda é como se voltássemos ao parque depois de uma reforma. A montanha-russa é quase a mesma. Mas, em vez de uma pirueta, são duas e a pista dá uma nova guinada para a esquerda antes de chegar ao final. As crianças se divertem do mesmo modo. E, depois da surpresa do novo percurso, darão mais voltas e voltas. Sem surpresas, mas, mesmo assim, mantendo o cabelo em pé e aquele frio na barriga. No final, as crianças gostam de boas histórias. Simples assim!

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