O primeiro contato foi um choque. “Eu me lembro que vi um monte de varais com roupas coloridas por todos os cantos em contraste com aquele chão carcomido, as paredes manchadas e o ambiente cinza”. Quando Flávia Ribeiro de Castro entrou na penitenciária feminina de Santos, havia cerca de 200 presas em um ambiente com capacidade para sessenta. Eram vinte mulheres para seis camas em uma cela. A primeira troca de olhares foi com Adriana Graças Pereira, a Xal. “Entrou alguém na cadeia Xal já ia para perto da grade. Ele era o jornal da cadeia, é um comunicador puro.
No livro “Xal – Órfã, Moradora de Rua, Prostituída, Presidiária e Milagre de Superação”, escrito em parceria com o jornalista Thales Guaracy e lançado pela Panda Books, Adriana diz que a sua vida mudou com a chegada de Flávia: “Ela foi capaz de construir um lar, um ambiente de acolhimento em, talvez, um dos locais menos acolhedores do mundo”.
Flávia Ribeiro de Castro é fundadora e presidente da ONG Casa Flores, instituição dedicada à ressocialização de mulheres que viveram a experiência do cárcere. A Casa Flores é também lar e a primeira experiência de refúgio para muitas delas. A Casa Flores oferece apoio social, educacional e de saúde. Tem mais uma parte que Flávia define como fundamental: o olho no olho, o café da tarde com bolo e a convivência dignos de um verdadeiro lar. Essa iniciativa impacta diretamente as famílias das pessoas atendidas e se estende às comunidades de onde vêm.
1. Amigas além do tempo
A Casa Flores nasceu de um encontro de amigas em 2016, logo depois de uma sessão de cinema do filme “Estrelas Além do Tempo”, história em que um grupo de matemáticas negras da NASA é obrigado a trabalhar à parte de outros engenheiros. “Eu tinha um contato com a Maria Laura Canineu, que estabeleceu a Human Rights Watch aqui no Brasil, também começando”, conta Flávia, que tinha lançado em 2011 um livro, “Flores do Cárcere”, com sua experiência na penitenciária de Santos. O livro explica como o amor, o respeito e a compaixão melhoraram a convivência das encarceradas, a ponto de muitas resolverem mudar de vida. As amigas passaram um ano pesquisando temas até que conversaram com a procuradora Berenice Gianella, que ficou à frente da Fundação Casa por doze anos. Chegaram à conclusão que o momento de maior vulnerabilidade era a saída do cárcere, onde não há qualquer tipo de atendimento.
2. Preconceito no aluguel
A ONG foi fundada oficialmente em 2018. O começo não foi sem dificuldades: tiveram o aluguel do espaço recusado várias vezes depois de revelar que a entidade ajudaria mulheres saídas do sistema prisional. “Lidar com todo esse preconceito é um dos lados difíceis”, explica Flávia. “A gente tem preconceitos que estão estruturados ou que, na verdade, estruturam a nossa sociedade. E essas falsas ideias atrapalham muito o nosso trabalho.”
3. Flores do cárcere
No ano seguinte, a Casa Flores lançou o documentário “Flores do cárcere”, onde algumas das egressas visitam o antigo “Segundinho”, penitenciária feminina de Santos-SP, desativada em 2014, por causa das más condições e da superlotação. À ocasião das gravações, Flávia reencontrou Xal: “Foi terrível. Ela estava morando na rua, numa tenda de plástico amarela, completamente drogada… No presídio, o chuveiro é frio, água é fria, mas ele está lá. Na rua não tem nada disso. Na rua é a calçada suja, a poluição, a chuva, o calor… é você viver completamente vulnerável, sem nenhum tipo de proteção: só com uma lona amarela. Xal vivia drogada com crack 24 horas por dia. Estava muito magra, quase sem mais nenhum dente. Nossa, foi horrível”
4. Abandonadas pelo Estado
A ONG tem atuado também em duas outras frentes: ativismo político, voltado à conscientização da realidade do sistema carcerário e das pessoas que ali estão, e produção de conteúdo, iniciativa que deu origem ao livro “Xal” e também ao documentário “Flores do cárcere”. Nenhuma participante do programa reingressou no sistema prisional. Mas a quantidade de pessoas atendidas é pequena. Há a esperança que, com a difusão dessas histórias, outras iniciativas semelhantes apareçam e o preconceito da sociedade diminua. Um terço das mulheres encarceradas sequer foram julgadas. A maioria é negra, de origem pobre, e processada por pequenos furtos ou envolvimento com o tráfico, onde usualmente são exploradas na ponta do trabalho, têm envolvimento com um traficante e são dependentes químicas. “Se um de nossos filhos errou e fez uma bobagem, o que queremos pra ele? É assim que as pessoas precisam pensar. E é assim que um governo deveria pensar. O governo não olhou para essas crianças em nenhuma das fases importantes da vida delas. Então não pode dar certo isso.”.
5. Bichinhos assustados
O trabalho com mulheres egressas do sistema prisional não foi o seu primeiro. Foi durante quatro anos diretora voluntária de um abrigo de crianças na cidade de São Paulo. Observou as crianças que chegavam “como bichinhos assustados”, muitas vezes sem sequer falar: vindas da vida na rua, do completo abandono e do consumo de drogas, sem documento ou nome que as identificasse. Ao constatar que isso era fruto em vários casos de uma mãe
encarcerada, quis entender o que poderia ser feito antes, para evitar esse abandono e solidão. O abandono paterno é frequente no Brasil e toda a responsabilidade é posta sobre a mulher.
Na infância, Flávia conta que estudou em colégios particulares e ajudava a madrinha, diretora de escola pública, a dar aulas de reforço nos fins de semana. Recorda-se também da mãe que, ao ouvir uma criança batendo no portão para pedir comida, a punha para dentro, a alimentava, dava-lhe banho e só depois ligava para o tio, que trabalhava no Juizado de Menores. “Quando era pequenininha, eu mudei de escola”, conta. “Nessa escola nova tinha uma casinha de madeira. Todo recreio eu ia lá para arrumar as coisas que estavam desarrumadas naquele larzinho. Para mim, lar é o símbolo de meu lugar do mundo, o espaço em que recebo afeto”.
Alimentada por todas essas experiências, Flávia repete até hoje o gesto de consertar outros larzinhos.