Com novos autores e mercado em alta, o gênero aproveita a herança dos clássicos estrangeiros
Não faz tanto tempo assim que os aficionados pela literatura fantástica precisavam recorrer a títulos estrangeiros para encontrar boas histórias ambientadas em galáxias distantes e universos extraordinários povoados por seres sobrenaturais. Pouco a pouco, porém, o panorama vem mudando: a literatura de fantasia, que já há várias décadas vem varrendo as prateleiras e lotando os cinemas em países como os Estados Unidos, passou a ser também um caminho possível para produções completamente brasileiras.
A Panda Books acaba de lançar “Alek Ciaran e os Guardiões da Escuridão”, um romance de fantasia da escritora paulista Shirley Souza. Na história, Alek é um garoto que, em meio aos conflitos normais de qualquer adolescente, acaba sendo transportado para uma civilização desconhecida, de um mundo antigo, onde se tornará um elemento decisivo nos conflitos entre os ciaran e os anuar. “Por mais fantástica que seja uma narrativa, ela conversa conosco de maneira íntima e fala de sentimentos e valores com os quais nos identificamos”, afirma a autora. “Não tive uma preocupação em construir uma costura entre a fantasia e o real. Esse entrelace surge de forma natural”. Shirley revela que muitos capítulos do livro surgiram na verdade enquanto ela estava dormindo – e sonhando.
A receita remete ao que talvez seja o maior sucesso do gênero de fantasia na literatura juvenil: ao longo de sete edições, a saga de Harry Potter, publicada entre 1997 e 2007 pela escritora britânica J.K. Rowling, revolucionou o mercado ao seguir exatamente esta receita – abordar conflitos reais dentro de um universo fantástico – para conectar milhões de jovens leitores, que compraram 450 milhões de cópias no mundo todo. A brasileira Claudia Fusco, mestre em estudos de ficção científica na Universidade de Liverpool, na Inglaterra, confirma que a série teve um papel fundamental na formação de um público leitor para o gênero: “Foi o meu contato mais intenso com a literatura fantástica. Eu era completamente apaixonada, fazia parte de fóruns de discussão… Temos muitos talentos chegando todos os dias e torço para que eles também sejam responsáveis pela formação de novos leitores”, diz ela, que concede méritos também à trilogia “Jogos Vorazes”, lançada entre 2008 e 2010 pela norte-americana Suzanne Collins.
A história da autora de Alek Ciaran endossa a percepção de Fusco, mas reúne um cardápio de influências que conta também com títulos como “O Senhor dos Anéis”, “O Hobbit”, “O Livro do Cemitério”, “Lugar Nenhum” e “Sandman”: “Sou fã de terror, fantasia e ficção científica. Em “Alek Ciaran”, fiz uma homenagem à Michael Ende, autor de “História sem fim”, o primeiro livro de fantasia que me marcou. São muitos os criadores e as obras que me marcaram ao longo da vida. Passaria horas comentando cada um”, diz Shirley. Formada em publicidade e propaganda, ela tem 15 anos de experiência como autora. São 40 títulos publicados e dois importantes prêmios conquistados: o brasileiro Jabuti, por “Caminho das Pedras”, na categoria livros paradidáticos; e o argentino Jóvenes del Mercosul, por “Rotina (nada normal) de uma adolescente em crise”, ambos em 2008.
Com o seu trabalho mais recente em parceria com a Panda Books, Shirley Souza coloca mais um tijolo na fortaleza que a literatura fantástica vem construindo no mercado nacional e internacional. Se antes para muitas pessoas esse gênero literário nem mesmo podia ser considerado literatura, hoje a aceitação é muito maior entre leitores, críticos e no mercado das editoras também. “A literatura fantástica sempre foi um tanto marginal. Sempre foi rotulada como ‘literatura de entretenimento’ e isso restringia bastante o mercado brasileiro, sim. A produção brasileira existe há muito tempo e conhecemos pouco desse passado. Até hoje ainda há quem torça o nariz”, admite a autora. “O engraçado”, prossegue, “é que essa literatura atrai. Cada vez que visito uma sala de aula e digo que escrevo essas narrativas, a conversa ganha um fôlego impressionante”.
De fato, o uso de elementos fantásticos na literatura brasileira não começou ontem. Em uma dissertação do curso de pós-graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 2018, a pesquisadora Karla Menezes Lopes Niels avalia, por exemplo, que a coletânea “Noites na Taverna”, lançada em 1855 por Álvares de Azevedo, reúne diversos elementos próprios do gênero. “O momento atual é bem empolgante. Estamos lendo e produzindo muita coisa nova. São tempos bem importantes para a formação de leitores de fantasia, ficção científica e horror no Brasil”, avalia, otimista, Cláudia Fusco. Com as novas tecnologias, as narrativas continuam ultrapassando o campo da literatura. Não só no cinema, como aconteceu com Harry Potter, mas também nos serviços de streaming, nas redes sociais e nos videogames. A dupla Carolina Munhoz e Raphael Draccon, por exemplo, já vendeu cerca de 1 milhão de exemplares na soma dos 10 títulos publicados. Com o sucesso, o casal foi convidado para assinar roteiros de séries de terror, drama e ficção científica para gigantes de produção de conteúdo como a Rede Globo e a plataforma de streaming Netflix.