“O Ateneu”: explicando Raul Pompéia e a decadência da Monarquia

Décimo livro da coleção “Clássicos da Língua Portuguesa” traduz expressões rebuscadas e referências antigas com notas explicativas bem curiosas

Um dos charmes da “Coleção Clássicos da Língua Portuguesa”, da Panda Books, são as centenas de notas explicativas, a maior parte delas dedicada a “traduzir” expressões excessivamente rebuscadas ou mesmo que estejam em desuso na língua portuguesa atual. O décimo título da coleção é “O Ateneu”, de Raul Pompéia, cuja publicação original se deu em 1888, um ano antes da Proclamação da República – a decadência da monarquia, aliás, é um elemento fundamental na construção do texto.

Apesar da narrativa envolvente, a leitura, na teoria, não deveria ser simples porque a Língua Portuguesa mudou muito ao longo dos últimos 120 anos e também porque muitas das referências que qualquer brasileiro médio entenderia no fim do século XIX hoje são incompreensíveis.

A Panda Books aposta em reedições que não modificam o texto original, mas que trazem diversos textos de apoio, idealizados e escritos pela jornalista e escritora mineira Fátima Mesquita. Para não atrapalhar a leitura, esses textos estão dispostos em duas colunas laterais, com uma diagramação que deixa muito evidente o que é o texto original e o que faz parte deste esforço de contextualizar tudo o que Raul Pompéia quis dizer com o seu livro.

Separamos 10 exemplos de “O ateneu” que vão além: notas explicativas que são um passaporte para conhecer novas personagens ou para entender melhor como viviam os brasileiros no século XIX.

1. “Na Grécia Antiga, Ateneu era o templo dedicado à Palas Atena, deusa da sabedoria. Daí, o termo ser sinônimo de escola”. Já na primeira página, Fátima contextualiza a escolha do nome do colégio (e consequentemente da própria obra) por parte do autor Raul Pompéia. A obra se passa no Rio de Janeiro no século XIX, mas o batismo da escola – que é bem diferente do Colégio Abílio da vida real, onde Raul estudou e se inspirou para construir “O Ateneu” – denuncia a influência da cultura grega (que vai aparecer diversas vezes ao longo do livro) na construção da obra.

 

Páginas do livro "O Ateneu"
Páginas do livro “O Ateneu”

2. “Na época de Honoré de Balzac (1799-1850), o homem na casa dos trinta anos era considerado jovem, mas a mulher da mesma idade era vista como acabada. Contudo, Honoré mudou o senso comum ao escrever o livro A mulher de trinta anos, defendendo que por causa do amadurecimento, a mulher vive o amor mais plenamente. Na obra, Júlia, após anos de infelicidade no casamento, enfim encontra o verdadeiro amor depois de seus trinta anos. Com o sucesso da ficção, a mulher de trinta passou a ser chamada de mulher balzaquiana”: aqui, Fátima Mesquita traz uma explicação detalhada para o uso da expressão “bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos de Balzac”. A expressão em si não é fundamental para o entendimento do livro, mas esta nota explicativa deixa evidente a preocupação em contextualizar expressões que eram de conhecimento geral na data da publicação da obra, mas que atualmente poucos compreenderão.

 

3. “Na época, as pessoas faziam quatro refeições diárias e com nomes diferentes dos de hoje. De manhã, era o almoço. O jantar acontecia entre meio-dia e duas da tarde. Lá pelo pôr do sol era hora da merenda. Depois, tipo nove da noite, vinha a ceia. Então, esse jantar do texto é, na real, o nosso almoço”: assim como os hábitos da população, a língua portuguesa também se modificou muito nesses 200 anos. Então, algumas palavras possuem um significado diferente do que possuíam na data da publicação original. Neste exemplo, a nota explicativa ajuda a situar o leitor no real significado da cena que está sendo narrada como “depois do jantar”. Coisa parecida acontece mais adiante, quando uma nota explica que o termo “carro” é empregado não para designar
um carro de fato, coisa que ainda não existia no Brasil, mas sim um veículo puxado por um cavalo.

4. “Em 1534 Portugal dividiu o Brasil em 15 capitanias hereditárias. Mas em 1709 apagou-se a ideia de capitanias e inventaram que o país seria dividido em províncias. Os estados só surgiram depois da Proclamação da República, em 1889”: o livro é tão antigo que nem mesmo a divisão geográfica do Brasil permanece a mesma. Por isso, na primeira oportunidade em que o texto
original traz a expressão “província”, a nota explicativa trata de explicitar que o paralelo mais simples é com o que hoje se chama de “estado”.

 

5. “No século XIX, não havia Carnaval, e sim uma festa chamada entrudo. Nela, fazia-se uma guerrinha de jogar água uns nos outros. Para isso, geralmente usavam os chamados “limões cheirosos” como projéteis: bolotas de cera preenchidas com água que se quebravam e molhavam a pessoa, quando atingida”: essa nota surge quando o protagonista narra o seu fascínio dentro
do laboratório de ciências do colégio, comparando a expressão dos seus olhos com os tais projéteis de entrudo.

6. “Em 1843, o Brasil lançou seus primeiros selos postais – o país foi o segundo do mundo a emitir selos válidos em território nacional, atrás somente do Reino Unido. A série conhecida como “Olho de Boi” é formada por três selos que tinham apenas seu valor desenhado (30, 60 ou 90 réis). Não era lá muito bonita, por isso o “malfeitos” do autor, mas hoje é uma das mais raras e almejadas por filatelistas do mundo todo”: seria impossível, sem o auxílio desta nota explicativa, entender o que quer dizer “desde os enormes malfeitos de 1843” no meio de uma descrição sobre uma coleção de selos.

 

7. “Os italianos que se instalaram no Rio de Janeiro eram pobres, moravam em cortiços e trabalhavam muitas vezes como vendedores ambulantes (os chamados ganhadores). Dependendo da região, carcamano quer dizer italiano, ou então vendedor ambulante. E há ainda quem a use para falar de árabes ou judeus, que tradicionalmente vendiam de porta em porta (os mascates). De um jeito ou de outro, o termo é sempre usado de forma pejorativa”: essa nota, além de trazer a origem de uma expressão que até hoje está na cultura popular brasileira, ajuda a entender também como algumas coisas deixam de ser aceitáveis com o passar dos anos. Hoje, é fácil reconhecer esta expressão como xenófoba. No original, ela é utilizada sem pudor, como se fosse banal, na frase “tantas as linhas, que as carteiras vistas de baixo apresentavam a configuração agradável de cítaras encordoadas, tantas, que às vezes emaranhava-se o serviço e desafinava a cítara dos recadinhos em harpa de carcamano”.

8. “O Rio de Janeiro começou a ter iluminação pública no fim do século XVIII. Ela existia em apenas parte da cidade e era feita por candeeiros queimando óleo de baleia. Em 1854, surgiu a

Páginas do livro "O Ateneu"
Páginas do livro “O Ateneu”

iluminação à gás nas ruas”. Para assimilar bem a obra, é preciso ter uma noção real do contexto em que se vivia à época. Por isso, notas como essa (bem como a nota que, poucas páginas antes, fala sobre o início da educação pública no Brasil) estão

cuidadosamente colocadas para que o leitor perceba como viviam os cariocas no período em que se passa a narrativa.

9. “Louis Moreau Gottschalk (1829) foi um pianista e compositor norte-americano que viveu um tempo no Brasil, onde morreu em 1869. Aqui, escreveu uma música baseada no hino nacional, a “Grande fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”. Ouça no YouTube. O livro de Raul Pompéia é uma grande oportunidade para conhecer figuras pouco conhecidas das gerações atuais, como o pianista Louis Moreau Gottschalk. A sugestão na última frase traz outra marca do livro: a interação com as novas mídias e a tentativa de fazer a experiência de O Ateneu extrapolar a simples leitura do livro.

10. “O sarampo já fez muito estrago no Brasil. No século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, rolaram cinco surtos de sarampo em anos diferentes. Hoje, a doença é bem menos comum, porque foi controlada com a vacinação”: controlar epidemias é algo que faz parte da história brasileira. O livro, por exemplo, fala sobre a dificuldade que havia, na época, para controlar os surtos de sarampo no Rio.

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