Sucesso no teatro, musical de Vitor Rocha chega aos cinemas e às livrarias. O texto nasceu numa sala de aula no interior de Minas Gerais
Uma peça teatral de uma turma do Ensino Fundamental de uma escola no interior de Minas Gerais ganha alguns dos palcos mais importantes do país, chega às telas dos cinemas e se transforma em livro. Parece ficção, mas é a história real de “O Mágico di Ó”, do jovem dramaturgo mineiro Vitor Rocha. Aos 24 anos, ele vê sua obra alcançar um público cada vez maior nas mais diversas plataformas.
A ideia de criar uma versão brasileira para o clássico “O Mágico de Oz”, publicado por L. Frank Baum, em 1900, surgiu já grandiosa na sala de aula. Tudo começou em 2013, numa oficina de teatro do Colégio Santo Antônio Objetivo, em Jacutinga – cidade do extremo sul de Minas Gerais, que fica mais perto de São Paulo do que de Belo Horizonte. Lá, ele rascunhou a primeira versão do texto: “Tive a ideia de adaptar o clássico para que a história não fosse contada de forma tão distante de nossa realidade”, recorda. “O furacão, Kansas…”.
Mesmo nascido em Pouso Alegre, no interior de Minas Gerais e a pouco mais de 80 quilômetros de Jacutinga, Vitor escolheu o Nordeste brasileiro para ambientar a sua releitura: “O Nordeste é cenário de zilhões de histórias e de uma memória poética infindável”, justifica. Por mais que veja semelhanças entre os cenários, ele prefere dizer que “o encontro mora nas diferenças”. E exemplifica: “A Dorothy via o arco-íris depois da chuva; a Doroteia nunca nem sequer viu a chuva. O Espantalho quer um cérebro; o nosso Mamulengo não acha que precisa de um”.
Transportar a história para uma realidade tão distinta levou a mudanças inclusive nos nomes das personagens: de Dorothy pra Doroteia; de Cara de Lata para Cabra de Lata; e de Espantalho para Mamulengo, numa referência aos teatros de bonecos que partem em caravana de cidade em cidade alegrando a população. Doroteia sai em direção a São Paulo junto da família, mas no meio do caminho acaba levada a uma terra cheia de magia e problemas.
Com a mesma estrutura e algumas modificações ao longo do tempo, a história ganhou corpo. Transformou-se num musical em 2019, num filme em 2020 e agora num livro lançado pela Panda Books. Quem ficou encarregada das ilustrações foi Nireuda Longobardi, que saiu do Rio Grande do Norte para morar em São Paulo. Nireuda é uma grande fã da versão original do clássico de L. Frank Baum: “Os personagens são fantásticos. A Doroteia eu já imaginei como uma boneca de pano; as bruxas, em vez de voarem numa vassoura, usam uma viola”.
Nireuda trabalhou com a arte da xilogravura. Xilo é um prefixo que se refere à madeira. Xilogravura é, portanto, a arte feita sobre madeira. A técnica nasceu na Ásia, mas no Brasil marcou as expressões artísticas nordestinas – como a literatura de cordel. Nireuda Longobardi se interessou pela técnica na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, onde se graduou em Educação Artística com habilitação em artes plásticas. Aprendeu, então, a desenvolver o processo que foi executado nas ilustrações do livro “O mágico di Ó”: “A gente começa lixando, impermeabilizando e limpando uma placa de madeira. Depois, é feito o processo de desenhar diretamente na madeira com um lápis macio. Em seguida, começa o processo de entalhe com goiva [uma espécie de pincel cortante com uma lâmina curta]. Tudo o que você tira da madeira fica em branco, em baixo relevo. E o que sobra, em alto relevo, é o que vai receber a camada de tinta”, explica.
Havia, no entanto, o desafio adicional de transportar as xilogravuras para as páginas de um livro: “É colocada uma folha de papel sobre a madeira-matriz e é feita uma pressão com ajuda de uma colher de pau ou uma prensa. Depois, o papel é retirado com cuidado e é pendurado em um barbante para a secagem”.
“O Mágico di Ó” traz ainda um outro elemento interessante: ele é, na verdade, a reprodução do roteiro do musical. Dessa forma, é construído todo em diálogo e traz as marcações que orientam diretores, atores e cenógrafos, de modo a se constituir também como um elemento rico para aqueles que têm interesse nas técnicas de produção de roteiros.
Mas, afinal de contas, como garantir que o leitor absorva toda a profundidade da obra lendo diálogos que, na teoria, são feitos para serem acompanhados pela interpretação dos atores, pelo faro do diretor, pelos figurinos, pelos cenários, pela música e pela iluminação do palco? Além das xilogravuras que ilustram a obra, o autor Vitor Rocha aposta na força das palavras. Que de tão fortes talvez sejam absorvidas de maneira ainda mais plena por escrito do que seriam em cima do palco: “Desde o começo imaginei que a história pudesse virar um livro. Existe uma costura de palavras e de referências que eu sempre quis que as pessoas observassem com mais calma. No teatro, esse não é o intuito. No palco, ele serve aos atores e a todo o resto. Eu queria que o público tivesse a oportunidade de ler com calma e observar esses detalhes na construção do texto”.
Um presente que ele comemora sobretudo pensando na memória de um país que ainda produz pouca dramaturgia: “É muito legal que a gente eternize um roteiro em formato de roteiro, que ele se perpetue. Para que outras escolas possam ler com os alunos, readaptar e trabalhar o teatro para além do conto de fadas. Não é dizer é o que o Leão faz. É dizer que o Leão está fazendo isso e você precisa interpretar desta forma. Tirar da narração em terceira pessoa é uma coisa muito poderosa”.
Há, portanto, uma infinidade de cenários e contextos nos quais a história original pode ser aproveitada. Em parte, com as mesmas lições. Ao mesmo tempo, observando como uma mesma narrativa pode ser contada e recontada de formas diferentes e com um impacto que jamais será o mesmo em dois lugares distintos. É assim, afinal de contas, que o autor pretende que a sua obra seja recebida: “’O Mágico di Ó’ ensina que não há lugar como o nosso lar. Mas isso vindo da boca de uma menina que vive em um ambiente familiar estável no Kansas é uma coisa. Outra coisa é ouvir isso de uma menina que é obrigada a deixar a sua terra por causa de questões sociais. Fazer com que ela acredite que esse é o melhor lugar do mundo provoca uma reflexão muito grande”.