O saber maior é o da criança

Educadora empoderou os alunos para as decisões do dia a dia da escola, colecionou prêmios, aplausos e experiências relatadas em livro

 

A educadora Marcia Corvelo Harmbach tinha vinte anos de carreira quando, em 2012, iniciou a sua jornada como diretora na Escola Municipal de Educação Infantil Dona Leopoldina, na zona oeste de São Paulo. Formada em letras e pedagogia e especialista em psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica da capital paulista, ela já havia trabalhado em um setor especialmente dedicado à formação de professores durante a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo na década de 1990.

Durante todo este tempo, uma questão em especial incomodava Marcia: uma espécie de “adultocentrismo”, que concentrava todas as decisões que impactavam a vida e o dia a dia das crianças nos adultos. Decidiu criar pequenos conselhos para que seus alunos pudessem ter voz para conduzir a rotina na sala de aula: “Envolvi as crianças em todos os planejamentos e avaliações do cotidiano escolar”, explica. “Ao me tornar diretora, esse foi meu principal instrumento metodológico na gestão”.

A percepção e a ideia são próprias, mas foram embasados no trabalho de dois baluartes da educação no mundo: o brasileiro Paulo Freire, aquele mesmo com quem Marcia havia trabalhado na Secretaria vinte anos antes; e o italiano Francesco Tonucci, hoje com 82 anos, grande defensor da ideia de que um olhar atento para a infância pode mudar os rumos das cidades. “Ao ter contato com as teorias deles, comecei a refletir sobre a importância da escuta e participação de todos os envolvidos no processo educativo”, lembra a educadora.

Com um pouco de teoria, muito estudo, um olhar incomodado para as normas vigentes, uma cabeça aberta para novas ideias e um fôlego incansável para transformar uma das muitas escolas de educação infantil da maior cidade da América Latina, Marcia começou a desenvolver a experiência que agora está registrada no livro “Gestão Democrática – Minúcias, dizeres e fazeres do conselho mirim na educação infantil”, lançado pela Panda Books. Ao longo de dez anos à frente da EMEI Dona Leopoldina, ela desenvolveu mutirões para ouvir as demandas de pais e alunos e conduziu trabalhos coletivos para a reforma e construção de hortas, ateliês, bosques, parquinhos e salas de aula: “Não foi tão tranquilo por parte dos adultos no início”, admite ela. “Mas, depois de poucos meses, toda a comunidade estava envolvida. É impossível fazer um trabalho assim sem o envolvimento de todos: famílias, educadores, gestores, parceiros”.

Marcia garante que implementar o conselho, em si, não exigiu nenhum recurso financeiro adicional – por mais que as crianças muitas vezes tenham solicitado o direito de opinar sobre a destinação dos recursos dos quais a escola dispunha. O Conselho se reunia mensalmente para discutir as ações levantadas pelas crianças e, assim, os adultos percebiam concretamente toda a potência delas. “Os alunos levantavam hipóteses e sugestões muitas vezes mais criativas e factíveis para os problemas do cotidiano”, recorda.

Para a educadora, a experiência é um bom exemplo de aproximação entre teoria e prática. Foi justamente a partir dessa premissa que a experiência da EMEI Dona Leopoldina entrou na rota da Panda Books. O título faz parte da Série “Práticas Inspiradoras”, que une bases teóricas com resultados empíricos para aquecer o debate sobre educação no Brasil. A série faz parte do selo Panda Educação, criado para agrupar livros dedicados à formação de novos educadores.

Na outra ponta dessa parceria, Marcia celebra a oportunidade de poder registrar nas prateleiras das livrarias os resultados grandiosos de sua experiência nessa escola: “O registro é fundamental para dar visibilidade às vozes infantis e para a concretude da teoria participativa na prática cotidiana”. Ela classifica o livro como “um instrumento para o protagonismo infantil como potência, e não como um saber menor como a história sempre autenticou até pouco tempo”. E ampara essa ideia na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989, que diz em seu artigo 12 que “a criança tem o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela” e “deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos que a afetem”.

Foi assim que os pequenos alunos da EMEI Dona Leopoldina detectaram problemas estruturais não apenas na escola como em toda a vizinhança. A escola está cercada por uma vasta área verde. Em um dos passeios, os alunos perceberam que vizinhos do outro lado da rua estavam despejando lixo na calçada da escola. Para não recorrer novamente em reclamações com o vigia da rua, pensaram em novas sugestões: “Entregar cartas nas casas vizinhas”, falou Rodrigo, de 4 anos; Isaac, de 5, apostou no didatismo: “Vamos explicar que lixo na rua pode provocar enchentes”; uma tática mais sutil que a de Valentim, também com 5 anos, que jogou suas fichas no constrangimento: “Quando o vizinho colocar lixo, um alto-falante avisa que não pode”; já Vitória, de 4 anos, e Helena, de 5, preferiram acreditar na boa vontade da comunidade e sugeriram distribuição de saquinhos de lixo nos muros da escola e a instalação de placas educativas pela rua.

De alguma forma, o livro é mais um reconhecimento para todos os envolvidos nessa empreitada da EMEI Dona Leopoldina. A escola ganhou oito prêmios, quatro deles voltados para a ideia dos conselhos: o Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Municipal, da Câmara Municipal de São Paulo; o Prêmio Nacional de Projetos com Participação Infantil, do Centro de Criação de Imagem Popular; o Prêmio Territórios, do Instituto Tomie Ohtake; e o Prêmio Escola – Lugar de cultura, brincadeira e diversidade, parceria da Universidade Federal do Ceará com o Ministério da Educação.

Isso sem contar as dezenas de palestras no Brasil e no exterior para falar sobre o projeto, que inspirou também a criação de um Conselho Mirim na própria Câmara dos Vereadores de São Paulo – e que tem entre seus conselheiros dois alunos da EMEI Dona Leopoldina. Nada mal para quem passou mais de uma década lamentando que a ideia dos conselhos gestores, iniciada pela gestão Paulo Freire na secretaria de educação lá na virada da década de 1980 para a década de 1990, tenha sido descontinuada pelos seus sucessores. O reconhecimento maior, no entanto, virá sempre daqueles que sempre foram o alvo de todas as mudanças, mas que até então jamais tinham tido a oportunidade de serem mais do que passageiros das decisões tomadas pelos outros: “Neste livro, o saber maior é o da criança, minha grande mestra no ofício de aprender e ensinar”.

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