O último cartucho

João Barone reúne objetos, fotos e documentos para construir a biografia de um dos 25 mil brasileiros que lutaram na Segunda Guerra: João de Lavor Reis e Silva, seu pai

 

Músico de sucesso e famoso baterista de Os Paralamas do Sucesso, João Barone assumiu uma missão: produzir e divulgar conteúdos que expliquem, contextualizem e, acima de tudo, valorizem a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Histórias não faltam: foram 25 mil brasileiros enviados para auxiliar os Aliados, liderados pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos, no combate contra as forças nazifascistas do Eixo, comandadas pela Alemanha de Adolf Hitler e a Itália de Benito Mussolini.

O desejo de tirar essa história do campo acadêmico e trazer para uma linguagem “pop”, como ele mesmo define, não vem apenas do interesse pelo tema, mas também porque um dos 25 mil “pracinhas” – como ficaram conhecidos os brasileiros enviados para a batalha em que a Itália se libertou de Mussolini e da influência alemã – era João de Lavor Reis e Silva, pai deste roqueiro de 60 anos, que já dirigiu três documentários e escreveu três livros sobre o tema. “Soldado Silva”, recém-lançado pelo selo “Livros de Guerra”, da Panda Books, é considerado por Barone como “o último cartucho” deste projeto de quase duas décadas. É que, depois de tanto esforço para reunir documentos históricos e apresentar essa parte muitas vezes subestimada na história do Brasil, faltava produzir algo que apresentasse uma biografia a respeito de pelo menos um dos combatentes brasileiros.

O Soldado Silva não falava muito sobre o seu período como pracinha do Exército Brasileiro, mas, quando o fazia, era pra desmistificar o que poderia haver de hollywoodiano na imaginação dos seus quatro filhos – João Henrique, João Guilherme, Maria Elisa e João Alberto, o caçula autor do livro: “De vez em quando, passava um filme de guerra na TV e a gente perguntava: ‘pai, a guerra era assim mesmo?’. E ele respondia: ‘Tudo mentira! A guerra era muito pior!’”, lembra Barone.

Silva era um homem que, apesar de ter sido escalado para combater a ascensão do nazismo, não se enxergava como um herói  (“Meu pai fugia do estereótipo do combatente que voltou neurótico de guerra: ele só queria retomar a vida”) e tampouco tinha qualquer apego exagerado às lembranças físicas dos seus tempos na Itália. “Os objetos fotografados para o livro eram a coisa mais concreta sobre a experiência de guerra do meu pai. Ele tinha roupas e uniformes que foram estragando… Antes que estragassem totalmente, ele doou tudo para um jardineiro que trabalhava em casa pra que ele trabalhasse com ela”.

Quando o soldado Silva morreu, em 2000, o baterista João assumiu a condição de guardião daquilo que hoje chama de “acervo histórico de um combatente”, mas que até não muito tempo antes era apenas uma parte da caixa de brinquedos da família: “A gente usava quando ia brincar de soldado. Incrivelmente, o capacete que ele usava sobreviveu a essas brincadeiras”, diverte-se Barone. Hoje esses itens estão guardados “longe de crianças” – os quatro filhos do Soldado Silva geraram oito netos e dois bisnetos.

Para proteger e valorizar memórias mais antigas que ele próprio, Barone também somou algumas viagens, incontáveis conversas com outras personagens – de companheiros ex-combatentes à mãe, Elisa, que durante a Guerra trocava correspondências com o soldado que então chamava apenas de namorado – e precisou superar contratempos como o roubo de um precioso álbum com fotos das memórias do pracinha 251126.

 

Quando foi que as memórias do Soldado Silva começaram a fazer parte da sua infância?

Esse era um assunto muito presente em casa. Eu e meus irmãos víamos o meu pai como um herói daqueles de filmes de guerra [risos]. Ele compartilhava as coisas com a gente de uma maneira muito antibelicista: ‘Foi rápido, a gente foi lá, deu uns tiros pro alto, espantou os alemães’… Ele não glamourizava a guerra. E eu fui desenvolvendo um interesse maior pela história do meu pai. Foi uma coisa lapidada com o tempo, um reencontro com o meu velho.

 

Como foi o trabalho de expandir essas memórias para além daquilo que já estava ali na sua casa, seja como registro oral, seja como lembrança física daqueles momentos?

Basicamente, o que está no livro são os objetos que a gente já tinha. São objetos simplórios, como o próprio capacete. Depois, a minha irmã me deu a cobrinha que era o símbolo da Força Expedicionária Brasileira e a medalha de identificação que eles usavam. Pelo meu interesse, especialmente depois da morte do meu pai, eu me aproximei de algumas associações de ex-combatentes e de outras pessoas que têm interesse nesse tema pela importância que teve a participação brasileira na guerra. É uma história muito interessante: a gente tinha uma representatividade muito grande, lutando contra o nazifascismo num gesto grandioso e ousado para se inserir na globalização. Eu fiquei imbuído de tentar valorizar o sacrifício de pessoas como o meu pai, que, aos 25 anos, largou o violão, pegou o fuzil e foi para a guerra.

 

O seu pai também tinha esse interesse em reencontrar esses ex-combatentes e falar sobre esse legado?

Meu pai ficou com uma certa “ressaca” pela forma como os combatentes foram negligenciados. Ele nunca se achou herói de coisa nenhuma e não gostava muito de valorizar a si mesmo. Tinha a percepção de que somos nós que temos que valorizar o esforço deles. Então nunca foi algo que fez parte do cotidiano principalmente porque as associações de ex-combatentes foram proibidas depois da guerra para impedir que houvesse qualquer representação política. A Casa da FEB, no Rio, por exemplo, só foi inaugurada em 1976. Meu pai frequentou eventualmente e ajudou alguns amigos que estavam em situação de penúria. Então, ele levava cestas básicas para ajudar um ou outro amigo. Teve também um evento em 1995 que marcou os 40 anos do final da guerra e eu o convenci para que fôssemos. Foi emocionante vê-lo ali, reencontrando e reconhecendo amigos ou o comandante da companhia dele. Na época as câmeras fotográficas não eram tão simples, mas eu consegui fazer uma foto ou outra.

 

Em que momento você percebeu que, além de uma lembrança sentimental de família, a história do Soldado Silva poderia ser tratada também como um registro histórico para a literatura brasileira dedicada à Segunda Guerra?

Eu aproveitei a minha condição de integrante de uma banda conhecida para abrir algumas janelas midiáticas. Dei uma de roqueiro excêntrico [risos]. Foi a partir dos anos 2000, quando eu me aproximei de alguns ex-combatentes e reencontrei esse legado. Eu tentei tirar aquilo do arcabouço acadêmico ou militaresco e levar para um ponto de vista mais pop. É engraçado: a gente olha os americanos, os ingleses… Eles têm um respeito muito grande pelos combatentes, e não só da Segunda Guerra. A gente olha e pensa: ‘poxa, como eles respeitam!’. Mas a gente tem um grande problema em valorizar a nossa própria história. Essa história tem episódios muito interessantes e que explicam o Brasil moderno. Isso tudo faz 80 anos, mas não parece. Muita coisa ainda está aí para ser entendida e assimilada. Tem muita coisa na nossa própria história que ainda precisa ser digerida. Para isso, precisa haver valorização.

 

O livro “Soldado Silva” tem registros fotográficos incríveis. Como foi reunir este acervo?

Essa é uma coisa que eu explico no livro: na época, ninguém viajava de avião. Era tudo de navio. Então, os soldados demoraram três meses para voltar. A Segunda Guerra acabou em maio e meu pai chegou em agosto de 1945. Então, ele comprou uma câmera e teve tempo para fazer alguns registros. Havia um álbum (e eu me lembro bem desse álbum), mas infelizmente ele foi levado quando roubaram nossa casa. Mas a minha lembrança é quase mágica: as fotos eram muito bem impressas. Parecia em 3D ou 4K. Eram muito bem reveladas. Ele tinha também papéis, folhetos, cartões postais de sítios turísticos ou históricos de Pompéia… Era uma viagem na história. Foi uma pena perder tudo por uma bobeira porque quem levou provavelmente nem sabia o valor que aquilo tinha. Felizmente as fotos podiam ser revisitadas pelos negativos que a gente achou aleatoriamente. Com algum esforço, pensei, seria possível transformar aqueles negativos que estavam se deteriorando em um acervo sentimental com o que sobrou das imagens que meu pai conseguiu fazer.  Acabou virando algo ainda mais mágico porque são fotos de pessoas que eu nem sei quem são. Então você fica pensando: quem é esse amigo? Será que meu pai se reencontrou com ele? Não é um acervo muito grande. São cerca de 30 fotos. Mas foram importantes para contar a história de maneira sensível. Foi um trabalho meticuloso de restauração.

 

A foto de capa, além de restaurada, também passou por um processo de colorização. Como foi feita essa escolha?

Conheci a Marina Amaral, uma brasileira de Belo Horizonte, que é referência mundial em colorização. Ela já editou livros fantásticos. A foto precisa ter uma qualidade muito boa, quase artística. E essa foto que a gente usou na capa o meu pai tirou numa máquina lambe-lambe lá na Itália. Os pracinhas faziam muito isso: tiravam a foto com um fotógrafo profissional e enviavam como um cartão postal pra família. Essa foto, inclusive, foi enviada pro Brasil com uma dedicatória para os meus avós. Então, essa foto passou por esse processo e foi escolhida para estampar a capa para passar a ideia de quem era o Soldado Silva.

 

De certa forma, a sua “pesquisa de campo” começou em casa e isso poderia já ser suficiente para dar conta da parte mais biográfica de seu trabalho. À medida que a sua obra ganhou também essa preocupação histórica, para onde essa pesquisa de campo se expandiu?

Tive a sorte de viajar várias vezes para a Itália. Foi muito emocionante porque eu me senti pisando nos lugares onde meu pai pisou. Os brasileiros até hoje são reconhecidos naquelas cidades pequenas, onde botaram os alemães para correr, sobretudo na região rural, na Emília-Romanha. Todo ano, na data da libertação da Itália, em 25 de abril, as crianças cantam a “Canção do Expedicionário”. Tentei captar essa percepção “in loco” para os documentários e livros. Ao mesmo tempo, eu tinha essa bagagem que vinha do meu interesse e da possibilidade de conversar não só com o meu pai. Infelizmente, não tive conversas suficientes sobre isso com o meu pai. Algumas coisas ele não contava. Por exemplo: ele deve ter dado os seus tiros por lá, mas isso ele nunca contou. Depois que morreu, conversei com outros combatentes e fui adquirindo uma bagagem própria, além de ler bastante sobre isso. Eu não sou historiador e não quero tirar o lugar dos historiadores. Sou um entusiasta e tentei botar meu interesse à serviço dessa história. É meu último cartucho pra abordar esse tema sobre esse ponto de vista mais “pop”. Mais que tudo, é um livro de imagens. É uma lupa sobre um desses 25 mil caras. É uma das 25 mil histórias. A ideia é dar a dimensão do que foi essa experiência de chegar à Europa no meio de uma guerra e voltar. Todos os comandantes do Regimento Sampaio [como é conhecida a unidade do Exército onde o soldado Silva serviu], que sabiam que o baterista do Paralamas era filho de um combatente, me convidavam para ir lá buscar a ficha de operações dele. Depois de uns 15 anos, eu fui e eles foram muito gentis. Me deram também um livro que conta toda a história do 3º Batalhão, que era onde ele estava na 9ª Companhia, e aí eu pude comparar as datas e criar essa narrativa para situar o leitor. Aí eu contei toda a história: nasceu em Foz do Iguaçu, conheceu minha mãe, foi pra Guerra, voltou, reencontrou minha mãe, teve filhos, trabalhou…

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