Problemas sociais de crianças e adolescentes brasileiros que trabalham na rua são tratados, com abordagem sensível, em livro-reportagem premiado
A cena é lamentavelmente comum em qualquer grande cidade brasileira: o sinal fechado é a senha para um grupo de crianças iniciarem um desfile por entre carros com vidros fechados, comercializando balas e chicletes ou fazendo pequenos malabarismos para conseguir dinheiro.
No meio de tanta gente que escolhe ignorar esse grave problema social brasileiro, a jornalista Bruna Ribeiro escolheu outro caminho e fez disso o seu objeto de estudo e o seu norte dentro do seu campo de atuação profissional. “Eu cursei jornalismo para trabalhar com educação e direitos humanos”, explica. “Sempre acreditei que a comunicação tem um papel fundamental para o desenvolvimento social”. Bruna iniciou sua jornada em 2006 na Universidade Metodista de São Paulo e hoje é uma escritora premiada por “Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil”, lançado em 2021 pela Panda Books.
Este ano, o livro foi laureado na categoria Livro Informativo no prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) – premiação que carrega o nome de Malba Tahan, pseudônimo do escritor carioca Júlio César de Mello e Souza, um engenheiro de formação apaixonado por Matemática, fascinado pelos números e autor de 50 livros, que viveu entre 1895 e 1974. Os autores também foram agraciados com uma menção honrosa na categoria livro-reportagem do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, que reúne treze instituições em sua comissão julgadora: “Foi muito gratificante porque é difícil trabalhar com esse tema. Esse reconhecimento sinalizou que estamos no caminho certo”, comemora.
Ao interesse por utilizar as palavras como ferramenta para ajudar as pessoas, Bruna adicionou o gosto por contar histórias de pessoas anônimas. Ainda na faculdade, por exemplo, ela fez um trabalho de conclusão de curso que trazia os perfis de meninas da Fundação Casa, o centro de detenção de menores de São Paulo: “São nas histórias do dia a dia que moram as grandes questões da sociedade”, justifica Ribeiro, que passou pelas redações de “Jornal da Tarde”, “O Estado de S. Paulo” (onde hoje tem um blog sobre o tema e também sobre educação antirracista) e “Veja S. Paulo”.
O rito definitivo de passagem dos grandes veículos de mídia para a especialização na luta pelos direitos de crianças e adolescentes aconteceu em 2016, quando Bruna aceitou um convite para trabalhar na Cidade Escola Aprendiz, iniciativa do jornalista Gilberto Dimenstein que desenvolve políticas públicas para a educação. As histórias da jornalista e da organização se cruzaram quando nasceu, dentro da instituição, o projeto Criança Livre de Trabalho Infantil. “Comecei escrevendo reportagens com foco no trabalho infantil Não tinha grande conhecimento sobre o tema de maneira específica, mas a partir dessa oportunidade fui aprendendo mais”, admite ela, que hoje atua como gestora do projeto.
Bruna resolveu contar essas histórias para quebrar também o que ela classifica como “mitos” que foram criados a respeito do trabalho infantil ao longo dos anos: “Quando alguém diz ‘é melhor trabalhar do que ficar na rua sem fazer nada’, você está dizendo que essas crianças, em geral negras, só possuem essas duas opções”. Começou, então, o processo de pesquisa, apuração e produção que levaria à “Meninos malabares”, feito em parceria com o fotojornalista Tiago Queiroz Luciano, do Estadão, responsável por todas as fotos espalhadas pelas 112 páginas do livro.
O processo de produção da obra começou em 2016 e levou cinco anos. Três deles só para que os autores percebessem que ali havia mais do que uma série de reportagens: “Percebemos que podia dar um livro e então fomos atrás de mais histórias”, conta Bruna. “Começamos a pensar nas formas de trabalho infantil e exploramos aquelas que são mais presentes. Começamos a apurar justamente a partir dos meninos malabares. Essa é uma forma clássica de trabalho infantil nas grandes cidades”. Na sequência, o trabalho foi expandido para outras vertentes, como o trabalho nas praias, nos grandes pontos de concentração nos feriados (de blocos de Carnaval a cemitérios em Dia de Finados) ou na indústria têxtil: “Geralmente, quando se denunciam as grandes marcas, o trabalho análogo à escravidão ocorre na linha de produção, na oficina de costura terceirizada. Achei que seria interessante registrar a quantidade de imigrantes que são explorados. Também fomos verificar o trabalho no campo, que foi um desafio”, admite.
O processo de apuração foi, de certa forma, mais simples nos momentos em que o objetivo era abordar o trabalho em espaços públicos: bastava procurar, encontrar e então iniciar as conversas (“sempre com muita transparência”). Nos lixões, nas empresas ou no campo, por se tratarem de propriedades privadas, a conversa já era diferente: “Buscamos fontes em redes de proteção, projetos sociais e lideranças comunitárias que pudessem fazer a ponte com as famílias. Então, a gente apresentava o projeto e eles concordavam em participar”.
Não bastasse toda essa dificuldade, ainda surgiu, em 2020, já na reta final da apuração do livro-reportagem, a pandemia da Covid-19: “Mudou tudo”, resume Bruna. O acesso às famílias ficou mais difícil ao mesmo tempo em que a convulsão social aumentou a ponto de criar uma crise humanitária nas grandes cidades brasileiras: “Lógico que o trabalho infantil já existia antes e já tinha relação com a desigualdade social. Temos um capítulo que se chama ‘A pandemia e a fome’. Isso marcou muito: na fase mais dura, com as pessoas isoladas, sem vacina, com toda a desinformação dos primeiros meses, quando ninguém sabia quanto tempo aquilo ia durar… Fomos até uma fila de distribuição de marmitas e vimos muitas crianças sem máscara, descalças, em situação de rua… crianças que estavam indo todos os dias para aquela fila porque o comércio fechou. Foi algo que surpreendeu. Foi uma virada que agravou muito essa questão e colocou o país de volta no mapa da fome”, lamenta a jornalista, que também possui pós-graduação em Direito Internacional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com extensão na Academia de Direito Internacional de Haia, na Holanda.
Bruna Ribeiro também menciona outros choques que teve ao longo da apuração. Um deles, no capítulo que registra o trabalho no lixão: “É uma realidade totalmente insalubre num lugar totalmente afastado de qualquer política pública, onde a escola mais próxima fica a meia hora de distância e grande parte da comunidade não tem acesso a saneamento básico ou luz elétrica. Foi chocante ver aquela comunidade toda escalando uma montanha de lixo. Você vê o contraste: tinha uma criança de 10 anos que tem o sonho de ser médica, trabalhar na área de saúde e vive numa condição totalmente insalubre”. Para ela, as formas de trabalho infantil são todas nocivas, mas algumas parecem ter um significado mais expressivo, como o trabalho nos cemitérios, que marcou pela contraposição entra a infância e a morbidez.
Falar sobre trabalho infantil abre brecha para que outros temas paralelos sejam abordados: acidentes de trabalho, evasão escolar, gravidez na adolescência, dentre outras questões que aumentam ainda mais a complexidade do problema. Problema que, para ser corretamente compreendido, depende de uma boa noção a respeito da construção histórica do Brasil: “O trabalho infantil tem raízes históricas nos mais de 350 anos de escravização da população negra no país”, assegura Bruna. “Nós temos um recorte racial da questão: 66,1% das crianças e dos adolescentes nesta situação de vulnerabilidade no Brasil são pretas ou pardas”.
Um problema que afetou também crianças indígenas praticamente desde que o país nasceu, mas que, na visão da jornalista, atingiu outro patamar a partir de um momento que deveria marcar uma conquista para os negros. Em 1871, a Lei do Ventre Livre garantiu a liberdade dos descendentes de escravizados que nascessem depois daquela data. “A letra pequena daquela Lei dizia que as crianças deveriam trabalhar até os 8 anos para o escravizador, quando então ele decidiria se concederia a liberdade ou não. Se não concedesse, a criança trabalharia para ele até os 21 anos. Se concedesse a liberdade, seria indenizado pelo Estado. O Brasil escolheu indenizar o escravizador e não o escravizado”, critica. Bruna também faz ressalvas às legislações criadas para os menores ao longo do século XX: “Houve uma criminalização da pobreza. Considerava-se que uma criança em situação de vulnerabilidade era irregular. A história registra que, nos primeiros anos da Febem [hoje Fundação Casa], muitas crianças eram internadas simplesmente porque eram pobres e não tinham família”.
No fim das contas, todo esse processo mitigou os avanços trazidos até mesmo por boas iniciativas como o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasceu em 1990 no embalo da Constituição de 1988: “Todo o contexto histórico criou uma naturalização do trabalho infantil. A sociedade defende o trabalho infantil para uma parte das crianças. O filho do rico, branco, está na escola em tempo integral, bilíngue, fazendo natação, judô, balé… Não existe uma ‘fórmula mágica’ para acabar com o trabalho infantil. É preciso pensar em políticas públicas intersetoriais: gerar emprego para os adultos, criar uma educação antirracista, evitar o consumo de marcas que explorem crianças, comunicar autoridades sobre os abusos, estimular as políticas para aprendizes que trabalhem aos 14 anos protegidos e conciliando o trabalho com estudo, investir em saúde, em moradia…”, sugere a escritora.