Filho do consagrado escritor João Carlos Marinho, Beto Furquim não rejeita influências, mas trilha a própria caminhada como um “obcecado pelas palavras”
A história de “A barca do canoeiro” começou num exercício daqueles que só mesmo um apaixonado pelos vocábulos poderia desenvolver. O jornalista, músico, editor e escritor Beto Furquim procurava palavras dentro de outras para formar frases. A primeira delas foi “tem um urso no percurso”. Depois vieram outras: “é tempo de temporal”, “no estouro entra o touro” e “a foca quase sufoca”. Era tudo apenas uma brincadeira, sem pretensão, até a então namorada de Beto, Sandra, anunciar a senha: “Isso dá um livro”. Deu mesmo.
Da brincadeira ao livro, porém, era preciso amarrar uma história com começo, meio e fim. Foi então que o autor pensou na história da Arca de Noé. Fascinado pelo universo animal desde a infância, a ponto de colecionar fascículos para conhecer o maior número possível de espécies, Furquim passou a perceber que muitas das palavras encontradas dentro de outras palavras eram nomes de bichos – como você já deve ter percebido no parágrafo anterior. “Uma coisa legal foi juntar animais famosos, como girafa, leão, zebra, com outros, como os insetos, que geralmente são esquecidos quando se escreve para as crianças”, afirma ele, que se define como um “obcecado por brincar com as palavras”.
Brincar com palavras e amarrar histórias faz parte de um cotidiano que Beto Furquim viveu praticamente desde a sua infância. Com 58 anos recém-completados no último dia 21 de agosto, ele é o mais velho dos três filhos de João Carlos Marinho, um dos mais importantes escritores infantojuvenis da literatura brasileira, falecido em 2019. Celebrado especialmente pelo seu primeiro livro, “O gênio do crime”, de 1969, Marinho publicou dezenove obras e ganhou em 1982 o Prêmio Jabuti, o mais importante do país, na categoria juvenil por “Sangue Fresco”: “Acompanhar uma pessoa que está criando é algo que influencia”, conta o autor a respeito das suas memórias com o pai, a quem define como alguém que “tinha sempre a preocupação de ser surpreendente, fugir do óbvio e buscar o humor”.
Sem negar essa relação literária que veio do berço, Furquim rechaça qualquer comparação ou mesmo qualquer tentativa de alcançar a projeção dos livros do pai: “Também tenho outras influências, então não se trata de trilhar o mesmo caminho que o dele”, resume. Há, no entanto, um olhar especial para o fato de que a obra de João Carlos permanece nas prateleiras de sucessivas gerações, abordando costumes que também sobrevivem ao tempo. É o caso dos álbuns de figurinhas, protagonistas de “O gênio do crime” e que voltam a pipocar pelo Brasil inteiro às vésperas de mais uma Copa do Mundo: “Meu pai mostrava tudo o que escrevia para mim porque eu tinha a idade do público que ele queria. Ele buscava a identificação com o pensamento de uma criança de 9, 10 anos e com a criança de 9, 10 anos que ele próprio tinha sido”, lembra.
Depois do sucesso de “O gênio do crime”, João Carlos Marinho publicou, em 1971, “O caneco de prata”. Numa edição seguinte, ele modificou bastante o texto para se comunicar melhor com o seu público. Recentemente, Beto Furquim encontrou e compartilhou nas redes sociais um exemplar da versão original do livro que estava todo rabiscado com as ideias que temperariam as versões futuras. É só um dos exemplares do vasto acervo que hoje está sob responsabilidade de Cecília, a filha do meio de João Carlos e Marisa – o casal se separou em 1984 e Marisa faleceu em 2021: “Tem muita coisa interessante sobre o processo de escrita dele, principalmente sobre como ele fazia anotações. É muito rico pra quem deseja entender este processo criativo”, garante Furquim, pai de Nuno (20) e Len (24).
O processo de criação de “A barca do canoeiro”, lançamento da Panda Books, foi feito em uma via de mão dupla: a partir das frases criadas, Beto Furquim estruturava a adaptação da narrativa bíblica da Arca de Noé; ao mesmo tempo, quando necessário, ele buscava algum jogo de palavras que atendesse à alguma demanda para o desenvolvimento da obra. O toque final veio do ilustrador Marcello Araújo, outro apaixonado pelo mundo animal, que desenhou todas as ilustrações a lápis, nos dois lados de uma folha de papel, antes de transportá-las para o computador: “Assim como Marcello deu toques sobre o texto, eu também dei palpites sobre as ilustrações”, afirma Furquim. “Se cada um tivesse feito apenas o seu trabalho, algumas coisas não teriam surgido”.
Com toda essa fuzarca, muitas surpresas estão reservadas ao leitor da arca.