Escritor cearense marcou seu nome na literatura brasileira com romances que colocaram a personalidade forte de suas protagonistas em destaque
“Lucíola”, lançamento da Panda Books na série “Clássicos da Língua Portuguesa”, não é a única obra de José de Alencar (1829-1877) a trazer no nome uma figura feminina. Também não é o único título a apostar na personalidade forte e envolvente de uma protagonista feminina para desenvolver um romance capaz de prender a atenção do leitor.
Na verdade, o escritor cearense desenvolveu uma espécie de trilogia de perfis femininos que compõem o que se pode chamar de “mulheres alencarianas”. As histórias não estão ligadas do ponto de vista narrativo e tampouco são uma continuação uma da outra, mas podem ser interpretadas como partes de uma triologia pelas semelhanças na estrutura do romance – são mulheres fortes, de personalidade, que retratam o tempo em que viveram (e no qual Alencar viveu e escreveu) e que têm uma visão mais avançada dos costumes.
“Lucíola”, o primeiro deles, por exemplo, saiu em 1862, num Brasil já independente e ainda não republicano; em tempos pré-iluministas de uma moral extremamente rígida sobretudo para as mulheres. Só que, ao mesmo tempo, com a memória ainda fresca de um dos grandes sucessos do escritor francês Alexandre Dumas: “A dama das camélias”, lançado em 1848. São muitas as semelhanças entre o clássico europeu e a trajetória da menina Maria da Glória. Ao ser expulsa de casa, ele se tornou Lúcia, uma cortesã – igual à Camille de Dumas (eram chamadas de “cortesãs” as prostitutas que atendiam clientes ricos).
Lucíola vive os seus conflitos internos e a repulsa pela própria vida de devassidão, enquanto encanta um jovem pernambucano chamado Paulo, que se apaixona pela pureza daquela mulher.
Dois anos depois, José de Alencar lançou “Diva”. Não era de forma alguma uma continuação, mas hoje em dia talvez pudesse até ser considerado um spin-off porque traz de volta a figura de Paulo. A diferença é que ele deixa de ser um protagonista para ser tão somente uma testemunha dos encantos de seu amigo, o médico Augusto Amaral, pela jovem Emília – a “diva” da história.
Dessa forma, se quisermos analisar as duas obras em conjunto, temos dois homens semelhantes no comportamento e na forma de ver o mundo profundamente encantados por mulheres totalmente diferentes. A Emília de “Diva” não admite ser tocada e demora até se abrir para o amor ou mesmo para qualquer ação que escape de sua própria rigidez moral.
Em seus romances urbanos que flertaram com o realismo de Machado de Assis, Alencar conseguiu, em um intervalo de dois anos, surpreender ao sair dos supostos pecados cotidianos de Lúcia para o pudor indestrutível de Emília.
O tempo passou. O escritor cearense experimentou novos caminhos e alcançou com outra mulher – Iracema, a virgem dos lábios de mel, a representante da força dos povos originários brasileiros – o seu maior sucesso.
Já no fim da vida, Alencar voltou a explorar um romance urbano com protagonista feminina que, pelas semelhanças, fecha essa trilogia. “Senhora” foi publicado em 1875 para arrematar toda a reflexão do autor sobre os embates entre o amor e o interesse. Apresenta, em Aurélia Camargo, uma mulher forte e decidida, que poderia simplesmente aceitar a humilhação de ter sido preterida pelo seu grande amor, Fernando, mais preocupado em arranjar um casamento com uma mulher rica. Acontece que ela própria se torna essa mulher, que pode comprar Fernando para estabelecer uma relação de poder diferente daquela que os romances mais tradicionais idealizavam para as mulheres. É, de certa forma, um retrato também de um Brasil com mulheres mais alfabetizadas e letradas, que tiveram seus novos anseios desvendados por autores como Alencar.
Apesar de originalmente não terem ligação direta, as três obras são naturalmente associadas. Tanto que, em 2005, a TV Record colocou no ar a novela “Essas Mulheres”. O autor Marcílio Moraes aproveitou o fato de as três protagonistas viverem na mesma época e criou uma história na qual elas viraram amigas que viveram cada uma o seu romance. Christine Fernandes foi a “Senhora” Aurélia Camargo; Miriam Freeland, a “Diva” Emília Duarte; e Carla Cabral, a Lúcia – ou “Lucíola”, que a Panda Books apresenta em nova edição da coleção “Clássicos da Língua Portuguesa”.